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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

NILZA MENDONÇA A encantadora de paladares

Monguba, mandacaru, jatobá, buriti. É a partir de ingredientes como estes que a chef Nilza Mendonça reinventa a gastronomia cearense.
Foi andando pelas areias do Barro Preto, em Aquiraz, que Nilza Mendonça recentemente deparou-se com uma ruma de guajiru espalhados. Há tempos, a quituteira procurava pela fruta, típica do litoral cearense. O encontro resultou em compotas e mais compotas de geleia, mais um experimento bem sucedido da chef e instrutora de gastronomia que há quase dez anos se dedica a pesquisar ingredientes nativos e ressimbolizá-los em pratos sofisticados. A pesquisa lhe rendeu o prêmio de Personalidade Gastronômica de 2013 no Ceará e um convite para ministrar duas palestras num dos mais importantes congressos gastronômicos da América Latina, o Semana Mesa SP, em novembro do ano passado. Lá, ao lado de nomes como o chef Alex Atala, encantou a plateia com suas receitas de panacota de buriti com crocante de monguba e calda de maracujá, e surpreendeu ao servir palma forrageira com medalhões de filé de cordeiro e farofa de algaroba. 

O POVO - Como surgiu o seu interesse pela gastronomia?
Nilza Damasceno - Meu interesse pela gastronomia é desde pequena. Eu tinha uma tia que gostava muito, meu pai também sempre gostou muito de cozinha. E eu vivi sempre nesse meio. Aos oito anos, minha mãe ia fazer as comidas, a gente morava no interior (Guaraciaba do Norte), na Serra... O fogão era aquele de barro, alto, com aquelas tampas de ferro. E eu botava uma cadeira forrada com couro inteiro e ia lá, mexer as panelas também. Quando ela via, eu já estava mexendo as panelas, mandava eu sair, mas não tinha jeito. Quando foi com 12 anos, já maiorzinha, uma mocinha, tinha muita manga, muito mel... Aí, eu digo, vou já fazer um doce. Botei aquelas mangas para cozinhar, com casca e tudo.

OP - A senhora nunca tinha feito nada?

Nilza - Sozinha, não! Nunca tinha feito, nem ninguém tinha me ensinado. Aí botei as mangas para cozinhar, depois peguei aquelas peneiras de taquara, do tamanho da bacia, tirei a casca de manga por manga e fui peneirar tudinho. Qual era a minha medida? Eu não tinha noção de medida. Peguei um prato fundo, botei, vamos dizer, três pratos daquela polpa da manga e peguei mel. Não era nem rapadura, era mel mesmo, dois quartos daquele mel e joguei ali dentro. E fui mexendo, até achar que estava no ponto, naquele ponto de geleia, mas para mim era um doce. E aí eu fui fazendo. Esse foi o primeiro, depois eu fiz com jaca, pegava os gomos da jaca e botava para cozinhar com mel; pegava o mamão, descascava, cortava em cubinhos, ralava, fazia de todo jeito. Botava um cravo, uma canela. Para mim aquilo era o meu doce, todo mundo gostava, todo mundo achava bom. Pegava o buriti... Porque nessa época a gente tinha goiaba com abundância, buriti, banana... de tudo isso eu fazia. Mas, assim, sem medida. O que era a minha medida? Eu provava, se eu achasse que estava bom...
OP - Era um processo intuitivo?
Nilza - Era intuitivo, vamos dizer que era nato. Já vim com ele. 

OP - Quando foi que a senhora começou a pesquisar o uso de ingredientes atípicos na gastronomia?

Nilza - Pesquisar mesmo foi quando eu comecei a trabalhar no Senac, na unidade móvel, que é aquele carro grande, todo equipado. Isso foi por volta de 2005, 2006. Aí eu fui viajar naquele carro em todo interior. E sempre que eu estava no interior eu encontrava alguma fruta, alguma coisa que as pessoas tinham por ter, mas que não faziam uso daquilo. “Não, porque a gente acha bonito...”. “Você já fez alguma coisa com ele?” “Não” “Você pode conseguir para mim em quantidade?” “Consigo”. Aí trazia e eu fazia.
OP - Qual foi a primeira?
Nilza - Por incrível que pareça foi um mandacaru (risos). Uma aluna chegou para mim e perguntou: “Professora, o que a gente faz com o mandacaru? Tem tanto mandacaru aqui, o que a gente pode fazer com ele?”

OP - Em qual cidade?

Nilza - Isso foi em Banabuiu. Aí eu digo: “Traga o mandacaru, mas traga sem espinhos (risos)”. Ela mandou o marido cortar, tirar os espinhos e trouxe assim uns quatro pedaços. Ali, eu retirei a casca e dentro tem um palmito. E eu disse a ela: “Vamos fazer alguma coisa salgada e uma doce”. Aí eu fiz um ensopado de tomate, com o palmito de mandacaru e fiz um doce caramelizado, com o palmito também. Foi onde começou tudo, o primeiro foi esse aí. Depois veio outro: “Professora, a gente faz tudo com a macaxeira. E com a casca da macaxeira, o que é que nós vamos fazer?”, Isso já foi aqui, no Bom Jardim II. Aí eu mandei trazer. Como eu já sabia o processo de trabalhar com a folha, que é a maniçoba, que se trabalha muito em Belém, eu pensei em fazer o mesmo processo. Durante o tempo todinho da aula eu fui cozinhando, cozinhando, cozinhando... e a casca vai arroxeando, de cor de rosa e branca ela vai passando para roxa. Eu digo: “Não, eu só vou fazer no dia seguinte”. Aí no dia seguinte eu processei a casca da macaxeira e agreguei um pouco de farinha, porque ela não tem amido, né?, e agreguei ovos, farinha de trigo, um pouco de queijo ralado, cheiro verde e fomos fazer bolinho. No final tinha 50 pessoas para comer o bolinho da casca da macaxeira (risos).
OP - Ficou bom?
Nome - Ficou uma delícia! São esses desafios, não é? O que a gente vai fazer com a casca da banana? O que a gente vai fazer com a casca disso? Sempre tem uns alunos que têm algum desafio, e foi isso que me incentivou a fazer a pesquisa, a começar a pesquisa. Aí, eu comecei com a macaúba, a pesquisar o que poderia ser feito com a macaúba, mandava os alunos trazer. Lá em Tejuçuoca tem uma fruta chamada groselha. Eu encontrei ela lá, encontrei na Serra da Meruoca e em Tianguá. Tava linda o pé!. “Ah, professora, é porque a gente achou bonito esses cachos dele, essas folhas”. “Traga”. E eu transformei em geleia, que não sobrou mais nada, entendeu? 

OP - Como a senhora teve a ideia de usar a palma forrageira como ingrediente de pratos sofisticados?
Nome - A palma forrageira foi o seguinte. Eu fui convidada para participar de um evento em São Paulo chamado Mesa Tendências. A tendência é o quê? É um desafio, não é? É o que vai ser, com o que nós vamos trabalhar, qual a alimentação, quais os ingredientes do futuro? E eu não tinha trabalhado ainda com a palma - mas ao mesmo tempo tinha. Porque quando a gente era ainda garota, uns 15 anos mais ou menos, meu pai gostava muito dessas coisas... Caju, quem primeiro eu vi trabalhar com caju foi meu pai. Ele chegou um dia, pegou uns cajus, tirou o suco, depois pegou aquele bagaço, botou ovos, farinha de trigo e disse que estava fazendo uns hambúrgueres de caju para a gente.
OP - Ele já chamava de hambúrguer de caju?
Nilza - Chamava assim mesmo. Já com a palma forrageira foi assim. Houve uma época em que teve uma seca muito grande no Ceará. Aí saiu uma reportagem mostrando o pessoal comendo palma forrageira. Até mostrava uma garotinha cozinhando uma palma, em cubinhos. Meu pai um dia também fez e deu para a gente comer. Tudo que ele fazia dava para a gente comer. Esta foi a primeira vez, só com tomatinho... O tomate cereja não era caro do jeito que é hoje, o tomate cajá também não era caro, ele dava assim em tudo quanto era lugar, que era o que a gente tinha no quinta de casa: tomate cereja, pimentão, cheiro verde. E ele fez isso. Bom, aí quando apareceu o negócio do Mesa Tendências, eu me lembrei. Lembrei que meu pai tinha feito uma vez, que eu já tinha comido, lembrei da história da seca... E pesquisando eu descobri que o México era o terceiro país que mais consumia a palma forrageira, os Estados Unidos... sabia de tudo. E ai eu fui levar a palma forrageira para o Mesa Tendências.

OP - Como foi a receita que a senhora preparou lá?
Nilza - Do mesmo jeito que eu tinha feito a primeira vez. Só os cubinhos de palma, apenas refogados com alho e cebola, não botei nem azeite, botei óleo, porque na época não se tinha azeite, só tinha óleo e era o óleo Pajeu, e mais tomate e pimentão. Este foi o primeiro (prato). O segundo, fiz mais moderno. Já foi cortado à Julienne (estilo que consiste em cortar os alimentos em tirinhas finas e longas), com medalhões de filé de cordeiro e uma farofa de algaroba.

OP - Como se dá na prática a sua pesquisa por estes novos ingredientes?

Nilza - Sempre que eu viajo para algum lugar, algum interior, a primeira coisa que eu faço quando chego é procurar. Primeiro, eu tenho contato com os alunos, claro, mas logo em seguida eu pergunto se eles têm alguma fruta, alguma coisa que eles tenham conhecimento que aquilo é alimento, mas que não usem. E procuro também uma pessoa que tenha mais idade, que já more ali há muito tempo, que me conte um pouco (sobre o alimento). Agora, mesmo, em Quixeramobim, eu encontrei marizeiro. É uma árvore, que parece com algaroba, dá uma frutinha desse tamanho, e eu já sabia da história dela, que ela foi alimento do sertanejo na época de grandes secas. Eles colhiam aquilo, depois passavam até seis horas para cozinhar, porque eles iam cozinhar no próprio favo dela, e aquilo era muito duro. E dentro, quando você abre, parece um grãozinho de milho, mas tem um sabor de amendoim. É até avermelhadinho por fora, como amendoim. Era do que eles se alimentavam. E também os índios, diz que era costume eles ficarem em volta de uma panela muito grande esperando que aquele produto fosse cozido para se alimentar com ele. Aí eu fui atrás, sai procurando e encontrei onde tinha margem do rio, perguntando para um e para outro, até que cheguei num pé de marizeiro na beira do rio. Mas eu não fiz como eles, eu fiz foi quebrar. Quebrei, tirei a semente e botei para cozinhar.
OP - A senhora disse há pouco que sua relação com a gastronomia vem de sua infância. A senhora teve alguma formação nessa área, a senhora estudou gastronomia?

Nilza - A minha formação... Eu vim começar a fazer mesmo, depois que eu casei e tive filho. Quando minha filha fez três anos, eu fiz o primeiro aniversário dela, tudo começou aí. Fiz mesa, fiz bolo, fiz tudo. Era aquele trabalho bem braçal, bem manual, de você bater o bolo na mão... Até a glace do bolo tinha que ser na mão, sem batedeira, abrir massa de pastel com garrafa, bem artesanal mesmo. Aí, as pessoas começaram a me procurar. Até o terceiro aniversário eu fiz sem cobrar nada, só pedia os ingredientes, porque eu estava praticando, né? Aí, fui fazendo. Depois eu comecei a procurar cursos, curso de embutidos industriais, embutidos caseiros, confeitaria... o que você possa imaginar. Aí eu fui morar em Manaus, meu marido era militar, e nessa época era a zona franca mesmo. Até a galinha, o leite, o peixe, tudo vinha de fora, nada era de lá. Aí eu comecei a fazer as passagens de comando da base aérea, que tinha todo ano, era um banquete com o que tinha de melhor, tudo importado. Foi lá que eu fiz um dos primeiros cursos de congelamento que teve no Brasil. Quer dizer, eu sempre fui me interessando. A cada nova cidade que a gente se mudava, eu continuava estudando e trabalhando. 

OP -A senhora morou em quais cidades, nesse período ?

Nilza- Olhe, depois de Manaus, a gente foi para Salvador. De lá a gente voltou para o Rio de Janeiro, onde eu já tinha morado antes. Lá, meu marido foi para a reserva e a gente decidiu voltar para Fortaleza. Mas assim que eu casei, a gente foi para Pirassununga, em São Paulo, onde eu fiz um curso técnico em Gastronomia.

OP - Como foi sua reação ao receber o convite para se apresentar na Semana Mesa São Paulo?
Nilza- Não sei nem lhe dizer. Eu nem acreditei quando me disseram. A Damaris (supervisora pedagógica do Senac) me chamou e disse: “Dona Nilza, a senhora vai para o Mesa Tendências”. Eu digo: “Eu? Tem certeza?”. Ela disse: “Sim, a senhora. A senhora pode se preparar porque a senhora vai para a Mesa Tendências e a Mesa ao Vivo”. Eu digo: “Os dois?”. (pausa) Aí você fica assim... Acho que eu qualquer profissão, bate sempre uma insegurança. A insegurança da responsabilidade que tu vai ter. E ao mesmo tempo, me senti envaidecida, porque eu estava perante grandes chefs do mundo inteiro. Mas era aquele “envaidecida” não de vaidade, sabe? Era por estar de igual para igual com pessoas reconhecidas no mundo inteiro e eu estava ali. Mas não era aquela vaidade de arrogância, aquela vaidade... não. Era aquela vaidade que te faz bem. 

OP - Qual foi a reação da plateia nas suas apresentações?

Nome - A reação da plateia foi assim impressionante. Eu estava nervosa, não vou dizer a você que não estava. Mas se me perguntar se eu estava pisando no chão (risos), eu não vou te dizer que estava (risos). E logo, fui apresentada por quem? Pelo Castilho (Ricardo Castilho, diretor editorial da revista Prazeres da Mesa, que realiza o evento nacionalmente). O Castilho fez questão de me apresentar.
OP - No Mesa ao Vivo a senhora executou um prato e no Mesa Tendências deu uma palestra?
Nilza - A gente monta o prato nos dois. A gente leva tudo pronto para só montar lá. No Mesa Tendências eu refoguei a carne na manteiga da terra, selei, e aquilo exalou um aroma muito grande que despertou a fome de muita gente (risos) e fiz bicoitos de jatobá e pedi que distribuíssem na plateia. Então, enquanto eles estavam assistindo à aula sobre palma forrageira eles também estavam degustando o biscoito de jatobá. Já na Mesa ao Vivo, eu fui com a panacota de buriti com crocante de monguba e a calda de maracujá, um cule de maracujá.

OP - Como é ser premiada pela primeira vez aos 74 anos? Aliás, como é ser “descoberta” aos 74 anos? 
Nilza - Para dizer a verdade, eu não me sinto com 74 anos (risos). Eu me sinto tão jovem como você (risos). É assim, te envaidece, mas não é aquela vaidade: “ah, eu sou a tal, eu sou a bam, bam, bam”. Para mim foi gratificante, um reconhecimento, né?, mas eu não tenho vaidade com isso. Pro ego é bom.

OP -A senhora não acha que é um reconhecimento que veio muito tarde?
Nilza - Não. Tudo tem seu tempo. Se eu recebi esse prêmio agora é porque tinha que ser só agora, eu tinha que ter uma estrada bem consolidada, para que ele viesse. E isso é muito bom, estou com saúde, então veio na hora certa.
OP -Quais são os critérios para escolher os ingredientes de sua pesquisa?
Nilza - São ingredientes que nós temos e que não usamos (na alimentação). Tem uns que já estiveram na nossa mesa e foram deixados à margem. Como o murici. Em quê que você vê o murici? Num suco, eu nem sei se sorvete ainda tem. O buriti mal você encontra em doce, suco eu acho que você nem vê mais, quando você pode usar para fazer um bolo, pode fazer um camarão ao molho de murici, você pode fazer uma geleia, você pode fazer tudo com ele. Você vai num restaurante aqui, o que eles vão te oferecer de sobremesa? Me diga aí, o que eles te oferecem de sobremesa?
OP -Sorvete, cheesecake, brownies...

Nilza - O que nós estamos tentando fazer com essa pesquisa e com o livro que vai ser lançado? Nós temos muita jaca, temos muito cajá... e ninguém faz nada. Ninguém te oferece nada. Nos restaurantes, nos hotéis, que geleia eles te oferecem? De morango. Eles oferecem uma geleia de manga, uma geleia de caju? Não. É isto que eu estou querendo, que eu pretendo mudar. Além de valorizar os ingredientes regionais, agregar conhecimento da nossa cultura, né?, a cultura nordestina. É claro que estamos falando, principalmente do Ceará, mas dentro desse contexto da cultura nordestina. OpovoOnine.
Deivyson Teixeiradeivysonteixeira@opovo.com.br  Émerson Maranhãoemerson@opovo.com.br

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