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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Dignidade do rio

O fim da rua Monsenhor Coelho, no bairro São Sebastião, em Iguatu, Cícero Correia Lima, 50, ou Neto Braga (foto) se prepara para dar entrevista num barranco que desce para o rio Jaguaribe. A poltrona velha, que divide o monturo com resto de material de construção e lixo para se afundar nele, é o ponto de partida da conversa. Ali, e em mais 12 beiradas do rio, a Cidade rejeita a condição de ribeirinha e tenta sufocá-lo na insustentável cultura de descartar, nas águas, o que "não presta" mais.

O que de “bom e ruim” entra pelo Jaguaribe deságua nos dois “mares” de água doce do sertão cearense: o Castanhão e o Orós. Das nascentes, na serra da Joaninha (Tauá), até chegar aos maiores açudes daqui, o mais extenso rio do Ceará (633 km) se mistura ao lixo e é destino de esgotos e excrementos de municípios e povoamentos não saneados. “Imagine a qualidade do peixe que se come dali?”, cutuca Neto Braga. 

Ainda mais agora com o Orós e o Castanhão secando e “todo esse caldo” reduzindo as possibilidades de vida. “Tudo o que Iguatu não quer mais, joga na correnteza e vai fermentar o Orós. Morreu tanto peixe por quê?”, indaga.

E não é exagero o que Neto Braga reverbera, feito um “cangaceiro” no Facebook, do mais desenvolvido município do Centro-Sul cearense. “Meu pai disse que esse chapéu (de couro à moda Lampião), eu só usasse quando tivesse uma luta. Minha causa passou a ser a revitalização do Jaguaribe”, pontua o ex-suplente de vereador pelo Partido dos Trabalhadores e artesão.

O Jaguaribe existe nele desde menino e, a partir de 2014, virou ativismo. De um vão do sobrado onde mora, meio biblioteca comunitária, meio redação para escrever textos que ganham as redes sociais e pequenos jornais de Iguatu, Neto Braga busca dar visibilidade ao rio.

Na peleja pela dignidade das águas, ele arrebanhou idosos e estudantes no movimento Cidadania e Ação. No mesmo barco e em intervenções nas margens do manancial, em escolas, igrejas (de qualquer credo), na praça, na Câmara Municipal, pelas ruas e na Prefeitura. “A intenção é formar o ser humano. Só podemos tratar a questão do meio ambiente se cuidarmos do homem, do ser humano. Aí, pode ser, ele compreenderá o Jaguaribe e a própria existência”, declama.

Rio da Onça - Numa manhã quente de julho, das 8 horas ao meio-dia, Neto Braga foi cicerone de uma visita guiada para provar o que descreve em gestos e palavras - ora poéticas, ora cruas - sobre agressões ao Jaguaribe no aldeamento que foi se urbanizando nas margens do curso d’água. 

“Alguns acham que sou louco. Só porque falo do que eles já aceitaram como parte da vida. Não se pode naturalizar a destruição da mata ciliar, beber água do mesmo lugar onde despejamos veneno, sangue, urina e cocô. Isso é a morte. Não adianta construir hospital e falar em saúde plena sem curar as águas do antigo Rio da Onça”, protesta.

Em parte da extensão de 7 mil e 200 metros quadrados do Jaguaribe, na área central de Iguatu, o rio é invadido por muros e edificações privadas e públicas. Há monturos permanentes e bocas de esgotos derramando sem trégua na Beira-fresca, no Buji, no Cruiri, na Gameleira, na Barra, no Tambiá, na Santa Rosa e no Serrote. O último, a saída para o Orós.

Sem saneamento - Socorro Feitosa, secretária do Meio Ambiente de Iguatu, reconhece a precariedade no entorno do rio. Em 2011, revela, um grande plano de saneamento foi traçado. Mas “não saiu do papel” e os recursos financeiros tiveram de ser devolvidos. 

O simples deixou de ser feito e o município continua a ter um dos piores índices de saneamento básico do Brasil: apenas 12%. “Mesmo que Iguatu faça a parte dela, outras cidades (80) continuarão poluindo o Jaguaribe”, transfere a responsabilidade. 

O Jaguaribe percorre 633 km, das nascentes na Serra da Joaninha (Tauá) até o Atlântico. A bacia drena 55% do território cearense e beneficia 81 municípios entre o Ceará e Pernambuco.

A morte de 65 toneladas de tilápias fez Francisco Rejânio, 42, perder o emprego. Régis, como é conhecido, alimentava os peixes. Agora, com a ajuda do filho Francisco, 21, está “escapando” na pesca do camarão “sossego” (miúdo). Numa manhã pegou 25 kg. Pouco. “Poderia ganhar mais ou menos R$ 50, mas tem o sal e outras coisas. Acabo ficando com R$ 20. O aperrei é grande”, descreve.

Antônio de Totô, 32, tem feito outros serviços na oficina de barcos do pai (Antônio Vicente, o Totô). A estiagem tornou sem serventia o ofício de fazer embarcações para o Orós, Castanhão, Banabuiú e Choró Limão. Durante o inverno, diz que fazem, por dia, cinco canoas e duas rabetas (barco a motor). E levam uma semana para construir uma barcaça.
Fonte: opovo.com.br
Demitri Túliodemitri@opovo.com.br

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