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domingo, 4 de setembro de 2016

O barco das almas em Banabuiú

Caronte deixou de ir buscar as almas no Castanhão. Ouvi essa história e tive vontade de me ausentar da Pousada Os Maias, lugar onde sempre pernoitamos quando vamos à Jaguaribara e ao Alto Santo.

Ir de noite até as beiras do açude, olhar. Sim, a morte também é do dia. Mas, desde pequeno, tenho a impressão que a madrugada é mais quieta para se morrer.

Minha bisavó Mariana se foi entre o fim da noite e o primeiro aviso do galo, meu avô Afonso também. Um primo idem e a tia querida, Auxiliadora... E, confesso meu desconhecer, nunca imaginei o Barqueiro também por aquelas bandas.

Ora, mais! Quem iria buscar o povo dali? Insulta alguém que me veio em sonho ou aperreio. Não era São Gonçalo. Deveria ser perturbação, sol de seca o dia todo na testa, os pés em molambos por subir e descer o fundo seco do Banabuiú e enfarte de histórias de quem perdeu a vida em cinco anos sem de chuva... 

O imortal Caronte ou assombração eterna tinha enganchado o barco na floresta pálida que submergiu com o fim das águas do Castanhão. O açude, o mais medonho em fundura do Semiárido, encheu num dilúvio. No 2004.

Ninguém esperava e choveu 40 dias encarrilhados e “esborrotou”. Não deu tempo derrubar a mata e foi afogada, com os bichos e tudo, antes de morrer cortada. Faleceu pensando que ainda está viva. Coitada, só volta quando a seca é sem fim, como agora. 

Pois bem. Caronte encalhou na copa da Caatinga submergida e quem morreu recente em Jaguaribara e no Alto Santo ficou na beira do açude esperando o barco. Moeda na mão e nada do Barqueiro.

Muita gente finada. A senhora que se suicidou por nunca ter aceitado a casa na Jaguaribara nova. O pai que morreu de tanto beber. O caçador de avoantes que levou um tiro. O pistoleiro e uma multidão de gente nas costas dele. A noiva que virou cenotáfio justo no dia do casamento. A mocinha que não se deixou violentar pelo ex-namorado...

Havia outras criaturas também. Milhares e milhares de peixes; galos-campinas; papagaios; as últimas suçuaranas; jumentos atropelados de estrada...

Esperaram o barco de Caronte por semanas. E vez em quando chegava mais um. Até de Fortaleza, São Paulo, da Rocinha. Gente que foi embora e desejou por último ser enterrada onde nasceu. 

Não sei se finado se aborrece de esperar. Uma senhora, falecida de morte por ter vivido muito, resolveu ir dali. Caronte não viria no açude quase seco. Os outros resolveram segui-la. Caminharam até Jaguaribara Velha e entraram na água já pouca. Passaram pela matriz, agora retornada, e foram para o cemitério antigo. Também ressuscitado pela seca.

DEMITRI TÚLIO é repórter especial e cronista do O POVO demitri@opovo.com.br

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